domingo, novembro 27, 2005

Sobre dias estranhos, cachorros, gatos e homens

As noites cinzentas são bem estranhas. Eu acho, pelo menos. Aquele barulho de carros agoniados, que parecem correr de um desastre fatal à cidade, junta-se com as nuvens meio negras do céu e o reflexozinho da lua minguada na água. Tudo isso, misturado com aquela fumacinha da noite cinzenta cria um ambiente hostil. Não sei, pode ser invenção da minha cabeça, mas esses dias são muito estranhos.
Eu estava, como quem não quer nada, sentado no para-peito da rua, esperando meu ônibus, como sempre faço, e estava pensando bastante. Coisas banais que ocorrem em minha mente. Coisas sobre o porque de eu estar ali, aquela hora da noite, esperando um ônibus maldito que demora anos pra passar. Sobre o porque de, especialmente naquela noite, o dia se mostrar tão estranho. Por que será que eu me abalo tanto com o mundo?
E assoviando e observando a lua minguada e a morbidez da noite, via pessoas correrem de um lado pra o outro, pessoas correrem numa só direção. Pessoas paradas, exaustas, sem ter o que fazer. Pessoas que inconscientemente aceitavam aquela forma de viver e nem se questionavam. Estar numa noite daquela e pensar uma coisa dessas é de fazer qualquer pessoa sentir-se mau.
Da janelinha do ônibus, dava pra ver a grande cidade e seu contingente de condenados se preparando pra dormir. Ah! Que bom é dormir sossegado. Esses pobres coitados nada devem a ninguém, nada pensam e só fazem as coisas para perpetuarem esse pacto de hipocrisia que existe entre a razão e a humanidade. É algo do estilo: "viva sua vidinha medíocre, seguindo os padrões e leis, e morra depois, sem acrescentar nada a ninguém, apenas perpetuando a espécie e esse manual de sobrevivência fácil".
Imagine você, que eu estou num ônibus razoavelmente cheio (as únicas cadeiras vazias são as que me cercam). Pessoas entram e saem deste veículo, olham pela janela e, por estarem tão acostumadas, vêm apenas uma coisa - o próprio reflexo.
Noites cinzentas, por serem hostis, deveriam causar náuseas e descontentamento nas pessoas. Só que a pobreza de espírito é um caso sério. Eu vejo que as pessoas estão tão entregues ao mundo e ao pacto, que mal param pra enxergar além do reflexo. Mal param pra se questionarem sobre como as coisas poderiam mudar se elas mesmas parassem de aceitar a vida rotineira que a humanidade em peso leva.
Nesse momento, uma lágrima sutil correu dos meus olhos, correu todo meu rosto impregnado da poluição das cidades e parou no meu queixo, solitária, como só as lágrimas conseguem ser. Permaneceu ali até o momento em que decidiu ir embora. E foi... se arremessou da minha face e morreu no chão de metal daquele ônibus vazio. Vazio de lágrimas e sentimentos sobre o mundo... Ninguém ali estava realmente se importando com o tom enegrecido da noite, com a rota do grande ônibus, o qual leva os passageiros humanos, enquanto houverem, para essa grande coisa inexplicável e estranha que se chama viver. Você nasce, entra no ônibus, sai dele algumas vezes, pega uns similares, mas, querendo ou não, um dia você vai pra garagem e não volta.
É, ninguém se importa. Não hei de gastar outra lágrima solitária por isso. Porém, não vou aceitar as coisas também. É triste ver como a grande pergunta fica de frente para as pessoas todos os dias e vê que elas não conseguem enxergar um palmo a frente do nariz. A única coisa próxima que conseguem ver é o reflexo, e esse reflexo nunca vai mudar...
- "Porque você vive dessa maneira?"
O ponto das pessoas vai chegando. Elas vão indo para casa, tomam aquele banho refrescante, bebem aquela água pura, afagam o cachorro que estava ali sentado há horas, esperando a despedida da noite, e, como quem não tem mais nada pra fazer, vão descansar. Acordam, e fazem a mesma coisa todos os dias. Alguns mudam a rotina por causa de umas ações, mas isso só lhes acorrentam mais nesse comodismo ingênuo.
E o ônibus anda... Cheguei sozinho em casa, em silêncio. Afaguei o gato, abraçando-o como se ele tentasse fugir. Não tomei banho, estava pensativo demais para jogar meu incômodo pelo ralo. Me olhei ainda por uns instantes no espelho, tentando descobrir que espécie de ser sou eu. Será que somente eu consigo enxergar os desprazeres deste mundo pré-fabricado? Alguém precisa me ensinar a viver, deste jeito previsível e igual eu não quero.
É, as noites cinzentas são estranhas. São boas noites, despertam toda a escuridão que tem-se guardada. E o ser humano é assim mesmo, precisa de um estímulo para fazer algo... Eu dormi e sonhei com dias melhores, sonhei com um mundo cheio de lagrimas em ônibus, e que essas lágrimas eram amigas, se abraçavam e se amavam. Nesse sonho, todos desciam no mesmo ponto, todos davam um sorriso de contentamento. Os gatos e cachorros se entretiam, todos faziam uma festa numa grande piscina e a alegria os impedia de dormir. Eles se olhavam no reflexo da água e sabiam exatamente o que eram. Eram a resistência deste mundo. A única esperança. Enquanto o resto do mundo dorme e se sente confortado, eles, brindavam a alegria. A alegria é descobrir que a cada dia uma lágrima a mais se juntava a eles.
Bem, querendo ou não, tenho o resto da minha previsível existência para tentar ver esse sonho um dia. Enquanto isso, ando só por aí, abraçando meu gato e sem tomar banho em noites cinzentas, rolando de tristeza na cama e, esperando que um sonho bom me ocorra. É certo que quando eu acordar as coisas vão piorar bastante, mas o ser humano é assim mesmo. Preciso de algum estímulo para fazer alguma coisa. Será que um dia eu faço?