terça-feira, setembro 02, 2008

Humilhação


Terça-feira, dia de branco. Dia do cidadão trabalhar. Um trabalho ímpar, lecionar num cursinho do governo. Do governo? Sim, um cursinho público. Publico alvo? Pessoas que tiveram educação regular na escola pública.

Há alguns meses, esse esforçado trabalhador vem preparando suas aulas. Conciliando faculdade, namorada, animais de estimação e, logicamente, seu trabalho feliz em sala de aula.

A vontade de integrar uma escola, não exatamente um cursinho, veio da coerente idéia de que a educação é uma boa via reparadora, ou atenuante, da desigualdade social. Pensa ele também, que não é exatamente otimismo ou esperança do mundo que se instala nesta idéia, mas sim, satisfação de tentar fazer algo bom pelo mundo, ou o máximo que o mundo lhe dá oportunidade de fazer.

Trabalhar em cursinho é complicado, no sentido de mudar alguma realidade. Simplesmente faze-los passar no vestibular e inclui-los no cerne do sistema, onde as informações começam a fazer sentido, ou não, e a nata 'intelectual', habita (em tese), a universidade, para satisfazer as espectativas do governo e modificar estatísticas não dizem absolutamente nada.

Ou seja, nosso querido professor está numa situação complicada desde o início. Outro atenuante é o fato dos alunos serem majoritariamente de difícil relação. Alguns simplesmente sentam-se de costas pra ele, ficam em pé conversando, gritam, correm, deixam seus celulares gritarem a cada cinco minutos, quando não atendem o mesmo e só faltam mencionar que estão na aula do 'otário' do professor de língua estrangeira.

Mas tudo se acerta, o tempo passa e as pessoas começam a tomar conta do seu papel e das coisas que fazem. As salas começam a ficar mais vazias, e o silencio e a compreensão começa a surgir. De alguma forma, pensa ele, seu esforço para criar um ambiente pelo menos coerente começa a, sutilmente fazer efeito. O único problema insolucionavel é o grande barulho externo modulado por um forro inexistente. Um peido do lado de fora atrapalha, mas ainda assim se leva.

O tempo passa. Algumas semanas preparando um simulado, um final de semana inteiro corrigindo-o, e um stress começa a surgir. Alguma satisfação começa a aparecer também, pois apesar do baixo rendimento, muitas notas foram favoráveis às espectativas.

Terça feira, seu dia de cansaço, 4 aulas a noite, 2 turmas, barulho e sono juntos. Depois de uma batalha nórdica na primeira turma, segue ele, impávido, confiante no seu trabalho e na melhora que pode proporcionar àqueles desafortunados, num país onde a mobilidade social é complicadíssima pelas vias lícitas.

Ao entrar na sala, os alunos que não querem assistir vão saindo a prestação. Mesmo com o pedido dele para que saiam os que quiserem, para ajudarem os que querem permanecer, pouco a pouco, a cada 5 minutos alguém levanta e resolve sair. O professor apenas estava corrigindo o simulado com os alunos que o fizeram.

Uma gritaria infernal atrapalha-o a traduzir aquele primeiro texto. Ele, com alguma pressa foi ao lado de fora e se deparou com três pessoas deitadas do lado da porta:

- Os senhores poderiam fazer silencio, estão atrapalhando...

- Atrapalhando como? Estamos quietos.

- Se estivessem eu não estaria aqui...

Voltou, e continuou a ler. Minutos depois, uma música começa a tocar do lado de fora. O que era? Um celular moderno, daqueles que se pode baixar música, tem infravermelho e até espaço para muitas mp3 têm.

- Pelo amor de Deus hein? Vão lá pra frente. Saiam dai, tá impossível ler esse texto.

- O que professor, estamos aqui sentados só.

- Estão e o celular sou eu quem to ligando pra você pra que toque né? Por favor, saiam...

Eis que um homem (eram um homem e duas meninas) fala:

- Pra eu sair você vai ter que pedir com educação...

- Então senhor, por favor saia daqui porque você está atrapalhando consideravelmente.

- Quero saber se você é homem de me tirar daqui.

- Tio, me de seu nome aí então por favor. Vai me ameaçar agora é? Você está errado filho...

- Meu nome? Meu nome é VÁ TOMAR NO CU.

***

A noite corre. Em casa, uma dor de cabeça animal. Uma tristeza incomparável a qualquer outro dia lecionando. Esperança de um mundo melhor? Esperança de mudança vinda de mim? O exército de um homem só? Nada disso existe. Eu não faço o que faço pra provar nada pra ninguém, nem muito menos pra ser economicamente estável. Eu tento fazer o meu melhor, tento ser uma força contrária a esse lixo que se tornou a modernidade. Sou melhor que meu aluno? Logicamente que não.

Tomarei no cu sim, tomamos todos, a cada dia que passa. A cada dia que acordamos e seguimos o mesmo caminho de sempre, sendo mais um que nasce, mas um que se desenvolve numa sociedade com caminhos predefinidos, e morrem, em jazigos previamente comprados. Até nosso epitáfio é predefinido. No meu, podem escrever "Tomou no cu" ou "É tudo culpa do sistema". Pouco importa. Agora independente do escrito, eu posso te dizer, se eu for assassinado por algum aluno insatisfeito, que eu simplesmente não me arrependo de algum dia ter me motivado a mudar o mundo. De algum dia ter tido consciência de que humildade, felicidade e desapego são essenciais.

Ninguém carrega o mundo nas costas, da mesma forma que ninguém é melhor que o outro. É muito diferente viver o mundo, ou passar por ele. Dançar conforme a música. Se estiver de passagem apenas, abaixe a cabeça e encoste a bunda na parede. Até a próxima, se houver.

"Todos estes que estão aí
Atravancando o meu caminho
Eles passarão
E eu passarinho...."
Mario Quintana

8 comentários:

Anônimo disse...

grande anderson... só não me diga que é você nessa foto?! hehehehehehehe :D
sinto muito por não termos tido a oportunidade de conversarmos um pouco antes de eu vim pra minha nova jornada...
sinto uma tristeza por fazer diversas comparações com a realidade daqui e a daí, e finalmente poder concluir que as coisas são possíveis de se tornarem realidade, mas que estão cada vez mais retroagidas... também sinto-me triste de acompanhar a sua luta incessante para que pequenas ações se transformem em grandes resultados... e de eu já não estar numa posição de fazer algo para ajudar, devido a distância...
mas as lembranças de nossa convivência, de tempos sem preocupação que tínhamos, isso ninguém pode mudar...
espero que ainda tenhamos a oportunidade de termos boas conversas e risadas, como um dia tivemos...
abraços, do seu eterno amigo, Fabricio Motta!

Mari disse...

Véi, sei exatamente o que é isso. já lecionei em cursinho público, escola pública e privada... e é tudo a mesma merda! A diferença é q na privada (literalmente) vc tem um patrão capitalista que ñ tá nem aí pra o menino malcriado - quer mesmo é o dinheiro do pai dele. na pública, o menino malcriado vai só pra cumprir o protocolo e fazer a mãe receber bolsa-escola. Eu me sentia uma anta nos dois locais. Valorização zero. Por mais que eu tentasse ser educadora. Mas, não. Eu não nasci pra isso. Não nasci pra ser a salvadora da pátria. Admiro quem tem boa vontade, como você. Mas eu, Anderson, quero mesmo é pular fora.

Beijooo!

Gi Novais disse...

Oi colega, são tantos os pontos e contrapontos q circulam esse assunto, q s eu fosse comentá-los n caberiam aqui. Esses aí q se orgulham em atrapalhar n sabem, mas são uns pobres coitados q estão no mundo à deriva...os educadores q desejam trilhar esse ardoroso caminho, s o quiserem, terão q s impor e relevar muita coisa ...boa sorte e espero n ter q passar por essa q vc passou, senão...sei não viu!? abraço.

wager matias disse...

Cara terá muitos outros momentos destes mas, algué tem que tentar fazer diferente. Infelizmente, é mais fácil dá uma aula, sair de la e tomar umas, transar, dormir e voltar no outro dia como se nada o mundo estivesse acontecendo mas, está e realmente estamos no lixo e precisamos construir o caminho das "luzes" que quase todos não percebem que existem ou n querem. Força e continue pq você faz pq acredita que seja isso o ideal. Abraço

Mônica Paz disse...

Muito inspirador o seu post, fico contente em ver alguém que leciona 'por ideologia". Fico grata pela visita e comentário no meu blog, que se tornem frequentes! bjs

Experiência Diluída disse...

Que texto espetacular! Anderson, apesar do "Tomar no Cú", lembre-se que vc tentou mudar essa realidade,que vc seguiu essa profissão para alterar algumas formas de pensar como as relatadas acima. Não sou professora, apenas estudante, e esse texto me comoveu porque vejo na Universidade atitudes como estas, do tipo "já sei tudo, não preciso de sua aula". Não falo de cursinho, mas universidade, que seria um lugar para maiores discussões sobre a sociedade em que vivemos e possiveis transformações nela. E ainda sim existem pessoas assim. Mas saiba que vc é muito reconhecido por aquilo que vc faz, e que um dia a ficha cai, e estas pessoas vão se pergunta o que fazer da vida agora, e nesse momento lembrarão daquele momento de trocas de conhecimentos perdidas...
Adorei seu texto! Vc deve ser um ótimo professor.

Abraço

Experiência Diluída disse...

Faço de suas palavras as minhas. Foi um prazer!!
Espero manter contato. O acaso é surpreendente, n acha?
A propósito, o meu nome é Ilani...Inali ao contrário... Sou de Feira sim. vou ser agora uma leitora assidua dos seus textos viu? Adorei!
Abraço!!

Experiência Diluída disse...

Cota para mulheres, nossa, a sensação que tenho é que eles estão brincando no poder...

Tenho 2 bandas, uma chama-se Atack Sonoro, se quiser ver as musicas tem no myspace => www.myspace.com/atacksonoro

E a outro é so de meninas, chamda Endometriose, essa ainda n temos nada gravado, so videos no youtube...hehe

bjs!